No dia 31 de Agosto de 2016, com a consumação de um golpe que retira Dilma Rousseff da presidência no Brasil, as forças elitistas, conservadoras e corruptas retomam o poder no país. A normalização do golpe com narrativas que o chamam de impeachment tenta esconder as dinâmicas nefastas que o consolidaram. Posicionamo-nos aqui contra essa normalização, e insistimos: É um golpe de Estado!
Nós nos colocamos junto àqueles que denunciam que essa é uma nova modalidade de golpe: parlamentar, jurídico e midiático. Sua diferença em relação aos golpes militares ocorridos na América Latina nas décadas passadas é que aqueles se caracterizaram pela utilização da força das armas como meio de tomada e imposição de poder, enquanto este se utiliza da força do desejo das massas manipulado pelos meios de comunicação que veiculam a narrativa fictícia de uma crise de consequências incontroláveis, o que mobiliza o medo e fragiliza. Acompanha a imagem da crise, a figura de um bode expiatório protagonizado pela presidenta Dilma e seu partido, o PT, e sobretudo seu líder, o ex-presidente Lula, sobre os quais projeta-se a causa da crise. A ficção e seu principal personagem são compostos por informações selecionadas pelo poder judiciário a partir de investigações policiais, de modo a lhe dar uma máscara de credibilidade. Aos poucos a ficção vai sendo adotada pela população como verdade, o que lhe oferece um remédio para aliviar seu medo e sua fragilidade: a destruição do bode expiatório. O Parlamento entra em ação para dar o golpe no momento em que esta tendência torna-se majoritária, o que lhe garante sua suposta legalidade democrática. Vale dizer, que a substituição da força das armas pela força do desejo é uma necessidade do capitalismo finaceirizado para o qual ditaduras militares são um estorvo para seu livre fluxo internacional. O novo regime capitalista necessita de um estado mínimo e flexível, o estado neoliberal, que leiloa o patrimônio do país e dá livre passagem para a tomada de poder da economia local pelo capital internacional – cujas metas incluem, entre outras, a precarização do trabalho como meio de acumulação exorbitante, versão atualizada da acumulação primitiva gerada pelo trabalho escravo. Basta constatar que, apesar das medidas do governo Dilma terem claramente beneficiado o empresariado (nunca os bancos enriqueceram tanto), este participou ativamente da construção do golpe. Contudo, é necessário apontar que o novo procedimento do poder capitalista não elimina o velho procedimento da força militar e repressora — resíduo ativo das ditaduras na América Latina — mas a ela se soma. A violência direta é uma sistemática na implantação do capitalismo financeirizado. As armas são usadas por várias facetas do poder militar: armas nas periferias sempre atirando e matando, tendo como alvo privilegiado a população negra; armas como instrumento de repressão nas ruas, nos movimentos contra o golpe, mediante extrema violência da polícia, hoje treinada pelo exército com novas estratégias e tecnologias. Em suma, o livre fluxo do capital financeirizado não depende apenas de Estados neoliberais. Ele também se baseia na força das armas nos países pobres e nas periferias, para mantê-los como fonte de máxima extração de mais-valia e evitar sua rebeldía, assim como manter “limpas” e “seguras” as áreas que comandam e acessam a circulação de capital. Para ficar em dois exemplos, lembremos, por um lado, das armas estadunidenses, européias e russas bombardeando intermitentemente a Síria e outros países, gerando as hordas de migrantes e várias outras formas de morte. Por outro lado, sabemos que os “golpes” nas periferias de vários países da América Latina são diários e que, em muitos lugares, os direitos e os recursos nunca chegaram.
O novo tipo de golpe foi aplicado antes do Brasil em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), onde do mesmo modo, a aparência constitucional ocultou a ruptura democrática; e o mesmo procedimento está sendo adotado em outros países da América Latina, preparando o terreno para os próximos golpes. No Brasil, o “julgamento” parlamentar que retira Dilma da Presidência da República, acontece a partir de acusações juridicamente inconsistentes, sem a comprovação de crime de responsabilidade, tal como previsto na Constituição Brasileira de 1988. Em maior ou menor grau, os ministros do Supremo Tribunal Federal atuaram de forma partidária, o que fragilizou o sistema presidencialista do país – que tem como base o equilíbrio de poder entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A falta patente de legitimidade criou um vazio institucional propício às forças conservadoras, dando cada vez mais espaço para o autoritarismo moralista, a intolerância às minorias e a anulação pela grande mídia de qualquer contrainformação, ao passo que as manifestações de resistência e as mídias alternativas não param de crescer tentando rebater a sistemática invisibilização dos posicionamentos que diferem da narrativa fictícia dominante. Mas, sobretudo, julga-se sem provas, apenas com base naquilo que convencionou-se chamar de “convicções”, que nada mais são do que manifestações da mesma ideologia que deu origem à ficção criada para legitimar o golpe – a ideologia do capitalismo neoliberal. Este é portanto também – e fundamentalmente – um golpe do capitalismo financeirizado em seu poder internacional que coloniza agora o conjunto do planeta.
Somente através da eleição indireta, sentido real do suposto impeachment, Michel Temer pôde chegar a ser Presidente da República. E com a mesma deslegitimidade, formou o ministério mais machista, ignorante e conservador desde a ditadura brasileira, composto unicamente por homens e brancos, grande parte deles envolvidos em processos por corrupção. Em seu primeiro dia de “governo”, com o mesmo autoritarismo estratégico, decretou o fim do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, excluiu e fundiu outros, e substituiu 6 dos 16 membros da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça por 20 outros, entre os quais militares que participaram da ditadura. Entre os novos ministros, escolheu Alexandre de Moraes para a Justiça, ex-secretário de Segurança de São Paulo, conhecido pela gestão mais violenta na repressão às manifestações de rua contrárias às políticas neoliberais, e acusado de corrupção na gestão da merenda das escolas públicas, o que provocou a reação dos estudantes secundaristas, que realizaram um dos mais poderosos entre os atuais movimentos de resistência a este estado de coisas.
Mais uma vez o golpe no Brasil se dá em prol da concentração de renda, do enriquecimento pessoal corrupto e para responder aos interesses de um sistema antidemocrático, de opressão das classes mais pobres, assim como das diversas minorias, e do desrespeito à sistemática mais básica da democracia: as eleições diretas por parte das brasileiras e brasileiros que elegeram Dilma Rousseff em 2014.
Que fazer?
Este tipo de reação autoritária e corrupta vem junto ao recrudescimento do plano neoliberal e do crescimento da direita no continente e seu brutal conservadorismo: as elites não suportam a saída da miséria de milhares de pessoas e a ampliação do acesso público à educação; este fato traz o fantasma de ameaça de perda de seu poder simbólico e territorial.
No curso dos últimos anos vimos a emergência de várias frentes partidárias de esquerda, movimentos sociais, lutas de minorias, grupos de precários auto-organizados, entre outros, serem atacadas por ideologias de direita, daqueles que não suportam a emergência de novas subjetividades políticas, pois é neste plano que sentem seu mundo ameaçado de ruir.
O duelo está posto entre a consolidação do plano neoliberal, marcado pela minimização do estado de bem-estar social, versus políticas de resistência que pretendem garantir direitos básicos, reafirmando a democracia do acesso aos bens comuns, materiais e imateriais. Nós nos posicionamos com a esquerda, e assumimos a resistência como movimento constante. Continuaremos resistindo às opressões históricas, e às novas ondas violentas do neoliberalismo.
Diante desse cenário, reconhecemos também os limites e contradições das esquerdas institucionais no Brasil e no continente. Considerá-las apenas “vítimas” das manobras das forças que as destituíram do poder é, no mínimo, uma visão simplista. Muitos partidos de esquerda não foram capazes, até então, de romper com as dinâmicas que favorecem a concentração de poder, ao fazer alianças equivocadas e transitar pelas vias da institucionalidade “democrática” próprias do neoliberalismo, mas também das tradições de comportamento político herdeiras da origem colonial – ainda tão presentes e ativas no continente –, sem encarnar demandas mais radicais de transformação. É necessário que tais partidos façam uma revisão profunda de suas histórias e realizações, erros e acertos. Mas, para além deles, cabe a nós pensarmos formas do fazer político que rompam estes limites da esquerda tradicional: outras formas de conduzir o Estado, mas que não se limitem a ele; formas que sejam fruto da “sociedade em movimiento” e que não se reduzam aos “movimentos sociais” que tenham o Estado como seu principal alvo.
A rápida e brutal virada à direita que está tendo lugar hoje na América Latina – após um ciclo de importantes reformas e conquistas sociais – se dá a partir da “doutrina do choque e do medo” [shock and awe] (Klein, 2007). Faz-se necessário um grito de conjuro contra os efeitos em nossos corpos da doutrina do choque e do terror aplicada em nosso continente desde os golpes de Estado dos anos 60/70 e baseada na execução de uma série de ações rápidas, violentas, avassaladoras, desproporcionais e inesperadas, para paralizar a compreensão do adversário e destruir sua vontade de lutar.
“Fora Temer” se clama hoje e, cada vez com mais força, nas ruas do Brasil. “Fora Temer” significa também: Fora o temor! Com este grito, dizemos que não vamos dar suporte à volta do coronelismo, do elitismo e dos diversos micro-fascismos que vêm se consolidando como resposta direta à emergência de novas subjetividades políticas, aquelas fortalecidas a partir das políticas públicas emergenciais e de ações em ressonância às demandas sociais, estabelecidas por governos reparadores dos efeitos de séculos de colonialismo no continente, ainda que de maneira incipiente. O desafio está no horizonte das resistências à tradição colonial-escravocrata, presente na existência individual e coletiva de nosso continente, e das novas formas de composição política.
Convocatória Fora Temer! Fora o Temor!
Desde a Red Conceptualismos del Sur, convocamos a uma campanha de ação gráfica internacional pela democracia plena e radical, pela justiça, pela proteção, manutenção e ampliação dos direitos. Esta é uma convocatória pela expressão livre tanto das dúvidas quanto dos desejos, tanto dos medos como da coragem, tanto da imobilização como da imaginação criadora. Um ato de solidariedade, com propostas de luta estratégica, de encontros, de formas de ser e fazer que reverberem as vozes que resistem a este estado de coisas, de modo que falem mais alto do que o ruído ensurdecedor dos meios de comunicação de massas e o silenciamento que produzem ao seu redor. (Envios de produções gráficas: redcsur@gmail.com)
Perplexos de ver esta repetição nefasta da irrupção de forças antidemocráticas, uma vez mais, em 2016, temos que dizer em alto e bom som: Fora o Temor! – condição para que o grito Fora Temer! possa materializar-se em ações de transformação efetiva.